Minha mãe sempre foi vidrada pela cultura espanhola e, em 1989, surgiu a chance de passar uma temporada em Madrid. Meu pai, que é músico, ganhou uma bolsa de pesquisa. E lá fomos nós para a Espanha, sem tempo de fazer um superplanejamento e sem apartamento alugado. Na época, eu tinha oito anos. Apesar do susto inicial e do chororô no aeroporto, ali eu comecei a me apaixonar por Madrid e já escolhi o Atlético para torcer.
Lembro que meus pais se adaptaram rapidamente, embora nunca tenham falado espanhol muito bem, e formaram um grupo animado e multicultural de amigos. E o mais legal é que eles mantêm contato até hoje com quase todos. Por outro lado, lembro que foi difícil alugar apartamento por causa do preço e da burocracia. Nossa sorte é que tivemos ajuda dos amigos.
Estou com meus pais no Brasil durante a pandemia e um dos nossos passatempos preferidos é relembrar, com muita saudade, da temporada em Madrid e comparar a cidade que conhecemos em 89 com a que eu vivo agora – mais de três décadas depois. Foi numa dessas conversas com minha mãe, a produtora Giselle Goldoni Tiso, que nasceu este post.
Antes é preciso contextualizar: em 89, Madrid ainda vivia os reflexos do fim de uma ditadura longa e, obviamente, repressora. De lá pra cá, será que Madrid e os madrilenhos mudaram muito?
Surpresas boas e pontos positivos
Giselle (1989):
Quando morei em Madrid, em 89, confirmei como os madrilenhos gostam de ficar na rua, de comer na rua, de festejar todas as datas na rua até de madrugada. A relação do madrilenho com a sua cidade é muito potente. E, para quem trabalha na área cultural, foi um sonho viver numa cidade com uma oferta tão impressionante nas artes. Chegamos momentos antes da abertura do museu Reina Sofía, que virou um dos meus favoritos.
Um parque enorme como o Retiro, bem no coração da cidade, também me surpreendeu positivamente. Notei que era um lugar democrático e frequentado por madrilenhos de todas as idades e de variados estratos sociais. Nas minhas idas anteriores a Madrid, sempre trabalhando, tinha a sensação de que faltavam água e verde à cidade.
Um ponto alto da nossa estada foi o acolhimento que Joana recebeu por parte de uma escola pública de arte. Ela era a única estrangeira na época. Todo o material, de qualidade, foi oferecido pela prefeitura.
Além disso, percebi que havia um esforço político, capitaneado por um governo central de esquerda, para que a Espanha avançasse em diversos aspectos depois de anos de ditadura franquista.

Joana (desde 2016):
Depois que me mudei de vez para Madrid, no fim de 2016, descobri que a cidade é infinitamente mais multicultural, com gente do país e do mundo todo, aberta e colorida do que eu percebia. Ter um bairro plural e politizado como Lavapiés é um privilégio. Outro bairro central que celebra a pluralidade e a tolerância é Chueca, que recebe anualmente a parada gay mais animada do planeta (fonte: eu).
Sempre soube que a noite madrilenha é sensacional, mas me surpreendi com o tanto de eventos legais ao longo do dia e quase sempre a céu aberto. Aliás, sou apaixonada pelas festas de rua de Madrid. Confirmei a impressão de que a cidade dorme tarde e acorda tarde, o que tem tudo a ver comigo. E, mesmo sem praia, eu acho que tem mais a ver com o Rio do que Barcelona.
Me chamou a atenção a variedade de espaços culturais gratuitos ou com preços acessíveis. Também gosto do fato de ser uma cidade que reaproveita bem seus espaços e tem sempre algo novo surgindo. Não é exagero: tem muita coisa rolando em Madrid o ano todo. Mas, ao mesmo tempo, é uma cidade surpreendentemente tranquila.
O transporte público também é um ponto alto. A quantidade de parques e de árvores nas ruas me surpreendeu positivamente, pois antes não via Madrid como uma cidade muito verde. E o pôr do sol costuma impressionar.
Adoro observar as mudanças na cidade a cada nova estação e é sempre uma alegria a chegada da primavera e do outono. São, com folgas, as melhores épocas em Madrid. Também passei a curtir mais o Natal e a decoração natalina pela cidade.
Surpresas ruins e pontos negativos
Giselle (1989):
Me surpreendi negativamente com os franquistas que tinham pavor de estrangeiros e tratavam muito mal quem chegava de fora. Destaco também o preço alto dos alugueis e a dificuldade para conseguir alugar um apartamento por conta da burocracia, sobretudo para os estrangeiros (resquício de uma extensa ditadura).
As ruas eram sujas, principalmente no fim de semana. Além disso, era complicado circular em alguns bairros, como Malasaña, por causa da quantidade de drogados e muitos deles passando mal. Aquele foi um período em que a heroína corria solta a céu aberto e era uma situação bastante angustiante.
Joana (desde 2016):
A principal surpresa negativa foi, na verdade, a minha dificuldade de me adaptar como moradora, apesar de gostar tanto de Madrid e conhecer a cidade desde pequena. Não imaginei que a questão do pertencimento bateria tão forte nem que sentiria dificuldade até com o idioma. Inclusive, não acho muito fácil fazer amigos madrilenhos. Na verdade, não acho muito fácil encontrar madrilenhos em Madrid (hahaha).
Me mudei num período em que o Vox, partido de ultradireita, ganhava força, inclusive na capital. Foi uma decepção constatar que a intolerância e o obscurantismo ainda estivessem presentes numa parte da sociedade e reconquistando espaço no congresso.
Isso significa que há saudosos do franquismo, mas é fato que hoje em dia os madrilenhos lidam melhor com a pluralidade do que em 89. Mas ainda sinto, em alguns momentos, falta de paciência com sotaques ou quem não fala perfeitamente espanhol (sendo que eles, no geral, não falam tão bem outras línguas).
Os alugueis altos, a burocracia e a dificuldade para encontrar informações precisas / oficiais, principalmente nos sites, me surpreenderam negativamente. Como sou carioca, também sinto falta de atendimentos mais pessoais e acolhedores em Madrid.
E, apesar de carioca, sofro com o verão altamente quente e seco da capital e o ar-condicionado imperceptível em muitos lugares. Por uma questão cultural, a cidade se prepara e se adapta melhor ao inverno do que ao verão.
Programas favoritos
Giselle (1989):
A cultura espanhola sempre foi muito presente na minha vida. Em Madrid, eu costumava assistir a filmes nacionais no cinema, inclusive morava perto do Cine Doré, e via muitos shows. Vi Bob Dylan, por exemplo, e grandes nomes do jazz, do clássico e do flamenco.
Saía bastante para comer fora (La Trucha e El Granero eram dois dos meus locais favoritos) e gostava de terminar o dia com churros e chocolate quente na San Ginés, um programa clássico até hoje. Curtia frequentar, à noite, a Calle Echegaray, principalmente o bar Los Gabrieles, que infelizmente fechou as portas.
Nos fins de semana, a gente costumava visitar cidades menores próximas a Madrid, como Segovia, Toledo, Tremedal, Pedraza, Chinchón e Cuenca.

Joana (desde 2016):
Adoro conhecer lugares novos em Madrid, mas meu foco é criar raízes e me sentir em casa em alguns cantos da cidade. O Matadero (centro cultural) é um dos meus lugares favoritos e vou com frequência, inclusive para tomar vinho e comer pizza de abobrinha na Cantina del Matadero. Na época dos meus pais, o local, um antigo matadouro, ainda não tinha virado espaço cultural.
Meu programa preferido em Madrid é mesmo sair para comer e beber nas terrazas e nos mercados. Os bairros boêmios que mais curto são La Latina e Malasaña (hoje em dia bem diferente do que era em 89) – e Chueca durante a semana do Orgullo Gay. A Calle Echegaray, uma das favoritas dos meus pais, continua cheia de boas opções, como os vizinhos Salmon Guru e Brew Wild Pizza Bar.
Infelizmente, alguns locais que eles frequentavam nos anos 80 e 90 não sobreviveram à última crise econômica (bom, penúltima, já que a Espanha vive uma crise agora mesmo) e fecharam definitivamente. A boa notícia é que o restaurante de paella predileto dos dois ainda existe e eu continuo frequentando. O nome é La Barraca.
Gosto de ir ao Rastro no domingo, como já fiz muito com a minha mãe, e emendar em algum bar por ali (El Viajero ou Café Pavón, por exemplo). Eu amo as festas de rua de Madrid, principalmente San Isidro, em maio. No verão, sempre vou ao festival Noches del Botánico, no jardim botânico da Universidad Complutense.
Também vou muito aos parques e adoro curtir o pôr do sol maravilhoso de Madrid. Costumo ir aos cinemas de rua, principalmente ao Cine Ideal, só com filmes legendados. E amo ter uma estação linda como Atocha perto de casa e poder pegar um trem para tudo quanto é lugar a qualquer momento.
Sair para fotografar Madrid também merece destaque aqui. Não faço mais com tanta frequência, mas era um dos meus programas prediletos quando me mudei. Aliás, preciso voltar a fotografar, porque é um ótimo recurso para conhecer melhor qualquer cidade.
Furadas
Giselle (1989):
Reparei que tinha muito batedor de carteira no centro, então passear na Gran Vía ou na Puerta del Sol à noite poderia ser uma furada. Também achava furada andar de táxi, que era bem mais caro em 89 do que agora. Sem contar que os taxistas eram mal-humorados demais. O metrô, na época, já cobria bem a cidade. Além disso, Madrid é plana e dá para fazer bastante coisa a pé.
Joana (desde 2016):
Pegando carona na resposta da mãe, ainda é preciso ficar de olho na bolsa quando estiver andando nas ruas mais turísticas e nas linhas mais cheias de metrô. No centro, há mais furadas, como as paellas caras e congeladas de alguns restaurantes de praças famosas.
Aqui uma dica: Madrid tem bons restaurantes especializados no prato mais famoso da Espanha e com preços que não assustam. Estes locais costumam ter uma fachada discreta, sem fotos de paellas nem cardápios na entrada.
Eu adoro o centro de Madrid, mas há outro inconveniente. Faz parte, claro, mas é difícil caminhar perto do Sol e da Gran Vía no fim do ano, por conta da quantidade de turistas que a cidade recebe nesse período.
Não que seja uma furada, mas dependendo da época, do horário e da linha, pode ser desagradável pegar o metrô lotado. Depois que me mudei, acabei me acostumando a andar mais de ônibus do que de metrô. Não é tão cheio (geralmente dá para sentar) e acho gostoso acompanhar a paisagem da cidade no trajeto, ainda mais se você não estiver com pressa.
Amizades
Giselle (1989):
Formamos um grupo bem misturado, com espanhóis, sul-americanos (poucos brasileiros), uma cubana e uma americana. Meus amigos espanhóis conheciam bem a nossa cultura e falavam português. Dois deles, os jornalistas Carlos Galilea e Rodolfo Poveda, são especialistas em música brasileira.
Outro amigo, o produtor Juan Blanco, não só falava português como já tinha vivido no Brasil. Umas das minhas melhores amigas até hoje é uma americana que vive em Madrid desde a década de 80 e também morou no Brasil.
Construímos uma rede de apoio e de afeto tão forte que Joana pode contar com todos em Madrid.
Joana (desde 2016):
Hoje em dia tem bem mais brasileiro morando em Madrid do que em 89. Então, é natural que os brasileiros se achem, se acolham e se apóiem. Foi o que aconteceu comigo. Também temos, meu namorado e eu, outros amigos sul-americanos. Não sei se porque somos muitos em Madrid ou por uma questão de identificação mesmo.
Por outro lado, não conheço muita gente da Espanha nem acho tão fácil assim criar intimidade com os espanhóis, a não ser com os namorados e as namoradas dos meus amigos brasileiros.
Há que se levar em conta que eu não trabalho fixo em Madrid. Ainda trabalho de casa para o Brasil e o blog, talvez por isso não tenha tantos amigos espanhóis assim. E Guy, meu namorado, trabalha na Amazon com gente do mundo todo – sendo que, no time dele, a maioria é estrangeira.
Ao contrário dos meus pais, não conheci espanhóis que entendessem e gostassem tanto da cultura brasileira. Meu amigo de Madrid que conhece melhor o Brasil (e, por sinal, fala português perfeitamente) é americano.

Jojo, adorei o post e todas as informações de duas épocas vividas por vc e sua mãe! Parabéns! Puxa, eu que vivo tão perto só fui a Madrid uma única vez e foi num momento de aflição (minha mãe infartou num voo de conexão ano passado) mas ainda assim o pouco que conheci adorei! Tenho que ir aí quando tudo melhorar! Bjo grande e parabéns pelo blog!
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Oi, Ju! Sua mãe tá bem? Espero que já esteja totalmente recuperada. E, sim, Madrid merece uma visita com calma. Vamos combinar isso quando tudo melhorar! Beijos com saudade 😘
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