A grande nevasca deste século, a pior nas últimas cinco décadas, deixou Madrid há mais de uma semana, mas o impacto ainda é sentido. Como continuo recebendo mensagens de amigos brasileiros curiosos, decidi tirar esse texto da gaveta e publicá-lo com um certo delay (assim tem sido durante toda a pandemia). Filomena provocou sensações e experiências intensas e antagônicas nos madrilenhos, que não estão tão acostumados a ver neve como muitos de vocês imaginam.
Neva bem pouquinho na capital – uma vez por ano e olhe lá. Ou nem isso, principalmente nos bairros ao sul. Na verdade, mais parece caspa no casaco e o chão fica apenas molhado. Decepcionante, eu sei. Isso ajuda a explicar por que Madrid não está preparada para enfrentar uma nevasca dessas proporções, mesmo que os avisos meteorológicos indicassem um temporal de neve como há muito não se via.
No primeiro dia, nevou forte por algumas horas. Foi o suficiente para tingir a cidade de branco, com cerca de 30 centímetros de neve em algumas ruas. Uma paisagem inédita para a maioria dos moradores. O clima, pesado por causa da pandemia (Madrid é uma das cidades mais afetadas pelo coronavírus), ficou mais leve e divertido num primeiro momento.
Os bonecos de neve, alguns bem criativos, invadiram as ruas e o centro ficou lindo. Lugares emblemáticos, como Gran Vía, Puerta del Sol e Plaza Mayor, viraram pistas de esqui improvisadas. Até um trenó, puxado por cachorrinhos, passou por ali.
Filomena voltou no dia seguinte e aí foram mais de 24 horas ininterruptas de neve na Comunidade de Madrid. A paisagem começou a mudar, com árvores derrubadas, blocos de neve caindo dos telhados e por aí vai. Muitas pessoas se machucaram e lotaram as emergências da região, num momento em que os hospitais já estavam bem cheios por conta da terceira onda (pós-festas de fim de ano). Outras, infelizmente, morreram.
Devido ao bloqueio em tantas ruas, os serviços de emergência não conseguiram atender aos infinitos chamados e muitos trabalhadores, inclusive da área de saúde, não puderam chegar aos locais de trabalho. Os ônibus pararam de rodar e, se não fosse o metrô, que chegou a operar uma madrugada inteira, a situação seria ainda pior. Sem trens e aviões circulando, ninguém entrava nem saía de Madrid.
As aulas também foram suspensas e os supermercados fecharam por dias – quando abertos, enfrentaram problemas de abastecimento. Outros serviços foram interrompidos, como a coleta de lixo. Filomena paralisou mesmo Madrid.
Nas estradas de acesso à capital, o panorama foi ainda mais tenso desde o primeiro dia de neve. Muitos ficaram presos dentro do carro, com temperaturas abaixo de zero do lado de fora. A maioria tentava voltar do trabalho e só conseguiu chegar em casa na tarde do dia seguinte. Alguns permaneceram 24 horas no veículo sem comida e sem gasolina suficiente para manter o aquecedor ligado.
A temperatura chegou a -10 graus naquele fim de semana, o que também é absolutamente inusitado em Madrid. O frio dificultou ainda mais o degelo. Sem um plano eficaz de ação e sem estrutura para tanta neve, muitas ruas da região seguem com gelo, árvores caídas e lixos não recolhidos mais de uma semana depois.
Hoje, a pedido da Comunidade de Madrid, a região foi declarada zona catastrófica e vai receber ajuda do governo central para se recuperar dos danos causados pela tempestade de neve. Filomena jamais será esquecida em Madrid.
